Eles lidam todos os dias com famílias enlutadas, mas mesmo assim nem sempre sabem o que dizer num funeral. Os agentes funerários portugueses estão a ter aulas de Psicologia do Luto
Na vida de um agente funerário, as situações e os comentários mais banais podem tornar-se -se momentos confrangedores. Paulo Rodrigues, 34 anos, confessa-se. Já ouviu um colega de profissão dizer \"até à próxima\" aos familiares do falecido, logo a seguir ao funeral. Uma situação \"embaraçosa\" com menos probabilidade de acontecer desde que arrancou o primeiro curso português para agentes funerários. Promovida pela Associação Nacional de Empresas Lutuosas (ANEL), a formação inclui um módulo de Psicologia do Luto, que ensina os profissionais do sector a lidar com as famílias enlutadas.
A primeira regra do relacionamento com o cliente dentro de uma agência funerária é óbvia. Não convém passar logo para a apresentação do catálogo de produtos. É que além de vender um serviço, um agente funerário tem de servir de suporte emocional - apesar de alguns clientes até mostrarem demasiado pragmatismo. \"Há quem chegue e trate de tudo de forma mecânica. O que não quer dizer que não se esteja a sofrer. São formas de lidar com o luto\", explica Joana Marafuz, formadora de Psicologia do Luto.
Paulo Rodrigues, que trabalha no ramo desde 1997 - altura em que começou a carreira como condutor de carros funerários -, conta que até há quem pergunte se pode tratar do funeral por telefone. E quem suplique para não se envolver nos preparativos. \"Porque estão de férias, está a correr tudo tão bem é uma chatice voltar\", conta.
Um agente funerário tem de estar preparado \"para ouvir de tudo\". Fala a voz da experiência de Francisco Silva, um dos mais antigos do ramo a frequentar o curso. Aos 55 anos já fez mais de 6 mil funerais. Nem todos pacíficos. \"As pessoas estão a atravessar um mau momento, por vezes tratam-nos mal, mas... é fingir que não estamos a ouvir\", conta. E o que nunca se deve dizer a um enlutado? \"Pedir para ter calma. É como se estivéssemos a desvalorizar a dor. É preferível recorrer-se a outras frases como \'\'foi melhor assim\'\', no caso de se tratar da morte de alguém doente. Ouvir, perguntar à pessoa se está bem, mostrar preocupação, oferecer um copo de água. Temos de fazer sentir que somos um amigo que quer, acima de tudo, ajudar a ultrapassar um momento difícil\", diz. O mais difícil da profissão é que cada cliente lida com a morte de forma diferente e as reacções são sempre imprevisíveis. Como é o agente funerário que vai buscar o corpo e o leva, os casos de agressões dentro das agências são frequentes. Porque os enlutados, justifica Joana Marafuz, \"estão perdidos nas emoções e vêem no agente a figura que lhes retira definitivamente a pessoa\". Mas nem todas as histórias acabam mal.
Um amigo para toda a vida Se para quem perde alguém o momento da morte é marcante e único, para o agente funerário tratar de um funeral é um procedimento rotineiro. Mesmo assim, a relação nunca é estritamente profissional. \"Apesar de existir um relacionamento comercial, os clientes estão a atravessar na maioria dos casos as fases mais difíceis da sua vida\", justifica Joana Marafuz. Como o agente ouve e apoia, acaba por se tornar num amigo para toda a vida. \"Depois do funeral, os agentes continuam a ser procurados e há clientes que continuam a telefonar, anos depois, a contar como estão\", conta a psicóloga.
Ouvir é o segredo do negócio. E, sempre que possível, falar pouco. \"Sem nunca mostrar crenças ou opiniões\", recomenda a especialista. \"Os agentes têm de ler os comportamentos verbais e não verbais do cliente e estar a par, em cada funeral, das causas da morte.\" Se, por exemplo, tiver sido inesperada ou violenta, há maior revolta nas famílias.
Nuno Monteiro, da ANEL, acrescenta que a base do relacionamento é o respeito. \"Temos de respeitar as pessoas. Ouvi--las e satisfazer todos os pedidos, dentro daquilo que a lei permite\", explica. Em matéria de funerais - que estão a custar uma média de 1500 euros em Portugal - conta que já viu de tudo, mas recusa- -se sempre a falar dos pedidos mais bizarros que lhe chegam à agência, \"precisamente por uma questão de respeito com os clientes\". Há facturas que chegam aos 40 mil euros e ir de limusina para o cemitério ou transformar as cinzas num diamante são dos luxos mais em voga.
Viver com a morte dos outros Além de ensinar os agentes funerários a lidar \"de forma mais empática\" com os enlutados, o curso tem outro objectivo: ajudar os profissionais do sector a \"protegerem-se mentalmente\" das rotinas do trabalho. \"Muitos confessam-me que têm dificuldade em falar com os amigos sobre a profissão e por isso acabam por procurar pessoas da mesma área, fechando-se muito\", explica Joana Marafuz.
Na vida de um agente funerário, as situações mais simples podem transformar- -se em momentos confrangedores. \"Às vezes, quando têm um amigo doente no hospital, são mal vistos só por perguntarem como está. Muitos pedem às mulheres, que não estão ligadas à agência, para ir saber do estado de saúde das pessoas próximas. Eles são sempre encarados como se estivessem, permanentemente à espera de fazer negócio\", sublinha a psicóloga. Por isso uma das estratégias para contornar a dureza da profissão passa por criar grupos de partilha - e as formações assumem esse papel.
Paulo Rodrigues admite que tem \"botão on/off\" que acciona quando entra e sai da agência. \"Mas há sempre coisas de que não se consegue desligar. Já chorei em funerais e tive de me ausentar e ir chorar para trás de um jazigo\", admite. Fora do trabalho, concentra-se nos filhos e faz desporto. \"A formação traz tudo o que há de positivo. Não só é uma ferramenta profissional, como ainda serve para conhecer pessoas. Entre colegas, esquece-se a concorrência\", garante.
\"É importante que os agentes funerários façam desporto, tenham hobbies e leiam livros que não estejam só canalizados para o tema da morte. Tudo o que sirva para levar o pensamento para outras realidades e que permita libertar a tensão acumulada durante o trabalho é benéfico\", deixa como recomendações a psicóloga do luto.